sexta-feira, 19 de novembro de 2010

O Enem, o palhaço e o nosso inferno

Luiz Geremias

"Extremo sofrimento infligido por certas circunstâncias, sentimentos ou pessoa(s); martírio, tormento."
Inferno, segundo o dicionário Houaiss
 

Cada vez fica mais forte a percepção de que vivo num inferno. Acordo, hoje, dia 17 de novembro de 2010, e leio texto de Michel Blanco no portal do Yahoo: “Tiriricas com o Enem”. Algo do escrito me traz essa certeza e, adianto, não faço aqui uma crítica ao articulista ou ao artigo, apenas o uso para refletir sobre certas palhaçadas e sobre o papel que a imprensa bem tendo na sociedade em que vivo.

O articulista diz que a eleição do humorista Tiririca “é creditada ao voto de protesto contra ‘tudo que está aí’” e que há uma “percepção generalizada de que nada no país funciona como deveria”. Ora, será verdade isso? Ou será mais uma “realidade” ideológica?

Tiririca, para se eleger, aproveitou bem a depressão presente na população que entende que “tudo que está aí” está mal. É, assim, bem mais esperto do que boa parte dessas pessoas.
A referência a “tudo que está aí” já é suspeita, pois tem uma abrangência estranha. “Tudo” é a totalidade das coisas, o total, e é impossível que haja uma percepção tão abrangente, pois não pode ser verdade que todas as coisas, sem faltar nenhuma, estejam tão ruins que requeiram protestos. Cheira a uma afirmação depressiva, que denuncia mais um profundo desânimo em relação à realidade do que uma efetiva análise desta.

Longe de ser uma idiossincrasia do articulista, parece mais uma regra de pensamento de uma camada da população que vive intensamente esse sentimento depressivo. Para muita gente, a realidade é desagradável, tão desagradável que se acredita que “tudo” está efetivamente ruim. Ora, não está. Por mais que estejamos insatisfeitos com a realidade, é preciso sanidade para entender que isso não significa que todas as coisas estejam péssimas.

Ora, nem tudo está mal e nem todo governante é inoperante e a referência da imprensa de ser um “quarto poder” vigilante e crítica dos outros poderes não dá aos jornalistas o direito a só ver os problemas da realidade, muito menos a exagerar problemas, como no caso do Enem. 
Pode-se dizer que Blanco usou uma figura de linguagem, um exagero generalizante para dar ênfase ao que quer dizer. Certo. Mas isso não anula o entendimento de que essa figura de linguagem denuncia a possível depressão de Blanco e a provável depressão daqueles que se identificam com essa ideia. Em resumo, podemos pensar que não são as coisas que estão ruins, mas que os que assim entendem a vida é que a vivem de forma nefasta e, por que não dizer, profundamente estúpida.

Tiriricas com o quê?
Francisco Everardo Oliveira Silva é um humorista que usa o nome artístico de Tiririca. Foi eleito com mais de 1,3 milhão de votos para deputado federal, por São Paulo, o estado mais rico da federação. Na minha visão, um excelente humorista – daqueles que têm a capacidade de fazer com que a gente sinta uma profunda alegria somente em olhá-lo. É um cidadão como outro qualquer, que exerce sua profissão com maestria. Pode candidatar-se a deputado ou qualquer outra função administrativa, sem qualquer problema. E pode ser eleito, como acabou sendo.

Tiririca, para se eleger, aproveitou bem a depressão presente na população que entende que “tudo que está aí” está mal. É, assim, bem mais esperto do que boa parte dessas pessoas. Talvez por isso tenha sido alvo de tantas referências negativas. É que essa gente que vive tão depressivamente faz parte daquilo que chamamos genericamente de “classe média”, tão bem descrita por Bolivar Costa, em livro raro, intitulado “O drama da classe média”.

A imprensa, todo o tempo, parece trabalhar com essa noção de idealização, vendendo a ideia de que, se todos fizermos o que deve ser feito, um dia tudo será perfeito, o governo será eficiente, os mecanismos democráticos funcionarão sem defeitos e, em última análise, todos seremos mais felizes, com melhor qualidade de vida. É uma doce, mas tenebrosa ilusão, principalmente quando se percebe que as empresas jornalísticas e seus jornalistas não abordam a realidade em sua totalidade e primam pela promoção do espetáculo, exagerando alguns tópicos do mundo real e minimizando outros. 
Segundo Costa, essa camada populacional vive realmente mal, mas não por conta da ruindade da realidade. Ele diz que a classe média é reacionária e combate a voracidade da burguesia, mas tem “horror pânico” a qualquer proposição que busque reordenar as coisas. Atribui, sempre, a má situação à improbidade administrativa e à inoperância dos governantes. Acha tudo ruim, mas não faz nada para mudar, a não ser “protestar contra tudo o que está aí”. Nada faz além de dizer que “nada no país funciona como deveria”. Em resumo, estão sempre “tiriricas” com algo, mas essa irritação não existe para mudar nada. Parece ter a função de uma reclamação perene que, infantilmente, busca atribuir a culpa de seus males a outrem.

Qualquer semelhança com a real classe média com a qual convivemos diariamente não é mera coincidência.

Será tão ruim?
Michel Blanco informa que “Centenas de estudantes foram às ruas de diversas capitais para extravasar revolta contra os sucessivos erros na aplicação do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio)”. O tal exame foi aplicado e houve alguns problemas, informados pelo articulista, como “Cartões-resposta trocados, questões repetidas ou ausentes e brechas de segurança que permitiram a alunos acesso a celular e dali ao indefectível Twitter”.


Ora, problemas sempre ocorrem, o que não significa que tudo tenha sido problemático e o próprio Blanco, demonstrando sua sanidade, opina que nem tudo está ruim, pois reconhece que “A bem da verdade, o número de prejudicados imediatos foi menor que o inicialmente noticiado: algo menos de 2 mil receberam a fatídica prova amarela com erros, num universo de 4,6 milhões de inscritos”. Mas, pondera que “as falhas abalaram a credibilidade do exame, e o imbróglio judicial em que se transformou o Enem deste ano traz decepção e insegurança a todos participantes”. Ok, podemos aceitar isso, mas precisamos também entender que boa parte dos tumultos que abalam a credibilidade do exame e trazem insegurança foram promovidos pela imprensa, que, como Tiririca, sabe bem explorar a depressiva classe média. Se menos de 2 mil tiveram problemas e mais de 4 milhões não tiveram, é profícuo perguntar se era necessária tanta histeria midiática para tratar do assunto.

E, enfim, cabe perguntar se os tais jovens que protestam sabem realmente contra o que estão protestando. Ou se simplesmente estão fazendo o que os pais fazem, ou seja, posicionar-se depressivamente em relação à realidade e ajudando a manter este inferno que Schopenhauer definiu como composto por almas atormentadas e demônios atormentadores. Se isto for verdade, o nariz de palhaço que usam nos protestos pode adquirir um translúcido e inesperado sentido: seriam palhaços mesmo, não como Tiririca, que faz da palhaçada o seu ofício, mas, quem sabe, palhaços na vida, “pessoas que provocam o riso ou que não podem ser levada a sério”, como define o dicionário Houaiss.

Idealizando o inferno
Aqui cabem algumas ponderações rápidas sobre esse tema infernal. Explorando essa potencialidade depressiva da classe média, a imprensa incentiva a percepção de que tudo está mal por conta da inoperância dos governantes. Ora, nem tudo está mal e nem todo governante é inoperante e a referência da imprensa de ser um “quarto poder” vigilante e crítica dos outros poderes não dá aos jornalistas o direito a só ver os problemas da realidade, muito menos a exagerar problemas, como no caso do Enem.

O que a imprensa faz, de forma geral, é aproveitar a depressão dessa gente e vender seus produtos, além de manter esse estado de coisas que permite a venda fácil desses produtos pernósticos. Ou seja, sob a capa de um compromisso democrático, o que pretende mesmo é incentivar um certo tipo de consumo, forjar uma realidade na qual “tudo está ruim” e que para resolver isso a única coisa a fazer é reclamar e cobrar mais eficiência. Isso parece significar dizer que o inferno não está satisfatório e que é fundamental cobrar mais competência ao diabo.

Se isto for verdade, o nariz de palhaço que usam nos protestos pode adquirir um translúcido e inesperado sentido: seriam palhaços mesmo, não como Tiririca, que faz da palhaçada o seu ofício, mas, quem sabe, palhaços na vida, “pessoas que provocam o riso ou que não podem ser levada a sério”, como define o dicionário Houaiss.
O sentimento depressivo e a minha percepção de que tudo não passa de um circuito infernal pode ser pensada abordando o âmbito da idealização. Segundo alguns psicanalistas, como a genial Melanie Klein, a idealização somente ocorre por conta de uma total incapacidade de perceber a realidade. Idealizar algo é uma tentativa mágica de sanar magicamente os problemas existentes não exatamente no mundo real, mas na imaginação. O idealizador vê a realidade como muito boa, maravilhosa, ou muito ruim, tétrica, nunca como ela é: potencialmente boa ou má, conforme a conjuntura, mas sempre mais complexa do que qualquer fantasia pode alcançar.

A imprensa, todo o tempo, parece trabalhar com essa noção de idealização, vendendo a ideia de que, se todos fizermos o que deve ser feito, um dia tudo será perfeito, o governo será eficiente, os mecanismos democráticos funcionarão sem defeitos e, em última análise, todos seremos mais felizes, com melhor qualidade de vida. É uma doce, mas tenebrosa ilusão, principalmente quando se percebe que as empresas jornalísticas e seus jornalistas não abordam a realidade em sua totalidade e primam pela promoção do espetáculo, exagerando alguns tópicos do mundo real e minimizando outros.

Procedendo dessa forma, a imprensa somente promove o sofrimento, apenas alimenta a depressiva percepção de boa parte dos palhaços que criticam o palhaço que se elegeu, certamente por inveja, pois, ao contrário deste, não ganham nada com suas palhaçadas, só perdem, perenizando o inferno em que vivem.

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